segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A Morte de Ivan Ilitch - León Tolstói -Vestibular FGV

 

 

A Morte de Ivan Ilitch - León Tolstói

 I

No palácio da justiça, que era um grande edifício, durante uma pausa no julgamento do processo movido contra a família Melvinski, os juizes e o promotor se reuniram no gabinete de Ivan Iegórovitch Chebek e a conversação recaiu sobre a famosa questão Krassov. Fiódor Vassílievitch sustentava calorosamente a incompetência do tribunal, Ivan Iegórovitch mantinha ponto de vista contrário e Piotr Ivánovitch, que fugira à discussão, passava ligeiramente os olhos pelas páginas do jornal que acabavam de lhe trazer. De repente, disse:
— Meus senhores, morreu Ivan Ilitch!
— Como assim?
— Aqui está. Pode ler — respondeu, e pôs nas mãos de Fiódor Vassílievitch o jornal, que cheirava a tinta fresca. Cercado por uma tarja, publicava-se o seguinte anúncio:
“Praskóvia Fiódorovna Golovina tem o profundo pesar de comunicar, a seus parentes e amigos, o falecimento do seu querido esposo, o juiz Ivan Ilitch Golovin, ocorrido a 4 de fevereiro de 1882. O féretro sairá sexta-feira, à uma hora da tarde”.
Ivan Ilitch era colega dos cavalheiros ali presentes e muito estimado por todos. Há várias semanas encontrava-se enfermo e era voz corrente que não se restabeleceria. Não fora substituído, mas cogitava-se que a sua vaga pudesse ser preenchida por Alieksiéiev, e para o lugar deste fosse Vinikov ou Stabel. Assim sendo, ao tomarem conhecimento da morte do colega, o que primeiramente ocorreu a cada um foi a possibilidade própria ou dos amigos nas promoções e transferência que ela iria provocar.
“Seguramente ocuparei o lugar de Stabel ou Vinikov”, pensou Fiódor Vassílievitch. “Há um bocado de tempo que me foi prometido, e a promoção representa um aumento de oitocentos rublos anuais, sem contar as custas.”
“Tenho que aproveitar a ocasião e conseguir a transferência do meu cunhado de Kaluga para aqui”, disse Piotr Ivánovitch de si para si. “Minha mulher ficará radiante. E não poderão mais me acusar de nada ter feito pelos parentes dela.”
E, em voz alta, falou:
— Bem desconfiava eu que ele não se levantaria mais. É uma pena.
— Mas, afinal, o que é que ele teve?
— Os médicos não souberam diagnosticar. Melhor dito, cada um diagnosticou uma coisa. A última vez que eu o vi, deu-me a impressão de que estava melhor.
— Desde as festas que não ia à sua casa. Estava sempre pensando em visitá-lo.
— Ele tinha dinheiro?
— Acho que a mulher tem uns cobres. Mas não é nada para encher os olhos.
— Sim, teremos que ir lá. Mas eles moram longe como o diabo!
— Longe da sua casa, é o que pretende dizer. Mas tudo fica longe da sua casa.
— Eis aqui um que não me perdoa por morar na outra margem do rio — disse Piotr Ivánovitch sorrindo para Chebek.
E os dois, comentando as distâncias que separavam as várias zonas da cidade, voltaram à sala de sessões.
Além das considerações sobre as prováveis promoções e transferências que a morte de Ivan Ilitch acarretaria, a própria morte de pessoa tão próxima deles despertou, como de costume, em cada um dos membros do tribunal a tranqüilizadora sensação de que escapara.
“Ora, bem! Ele inorreu e eu estou vivo!”, pensou ou sentiu cada qual. Quanto aos amigos mais chegados de Ivan Ilitch, os chamados íntimos, unânime e involuntariamente consideravam os aborrecidos deveres a cumprir — aconipanhar o enterro e fazer unia visita de pêsarnes à viúva.
Os mais ligados a ele eram Fiódor Vassílievitch e Piotr Ivánovitch. Piotr Ivánovitch fora seu colega na faculdade de direito e acreditava que tinha certas obrigações para com o finado.
Tendo, no correr do jantar, informado à mulher o falecimento de Ivan Ilitch e ainda tecido algumas considerações sobre a possibilidade que se abria de o irmão dela ser transferido, Piotr Ivánovitch sacrificou a habitual sesta e, adequadamente trajado, bateu para a residência do morto.
Defronte ao prédio estavam parados uma carruagem particular e dois fiacres. Na saleta de entrada, encostada à parede, junto do cabide, achava-se a tampa do caixão, forrada de gorgorão e com guarnições e galões dourados. Duas senhoras de luto tiravam seus casacos de pele. Uma, Piotr Ivánovitch conhecia — era irmã do extinto; a outra, nunca vira mais gorda. Schwarz, um colega de Piotr Ivánovitch, descia a escada e, ao dar com o companheiro, piscou-lhe um olho, como que dizendo: “O que Ivan Ilitch fez foi uma grande tolice. Nós é que não caímos nessa”.
O rosto de Schwarz, ornado de suíças à inglesa, e toda a sua magra figura, em traje de circunstância, expressavam a sua peculiar e solene elegância, e tal solenidade, contrastando com seu gênio folgazão, tinha ali, mais do que nunca, um pitoresco sabor. Assim, pelo menos, foi o que pareceu a Piotr Ivánovitch. E, tendo deixado as damas passarem na frente, subiu vagarosamente a escada. Schwarz não descera; esperara-o no patamar. Piotr Ivánovitch percebeu logo o que o retinha: queria combinar um lugar onde pudessem, mais tarde, jogar uma partidinha de uíste. As senhoras encaminharam-se para o aposento da viúva e Schwarz, com a boca compurigidamente contraída, mas o olhar trocista, fez ao amigo um sinal com as sobrancelhas, indicando, à direita, o quarto do defunto.
Como acontece com toda gente em tais ocasiões, Piotr IVánovitch entrou sem saber ao certo o que devia fazer. Mas uma coisa não ignorava: um sinal-da-cruz é sempre oportuno. Ficou, porém, em dúvida se deveria também se ajoelhar.
E, então, ao transpor a porta, apelou para um discreto meio-termo: persignou-se e inclinou ligeiramente a cabeça. Ao mesmo tempo, tanto quando o permitiam os movimentos da cabeça e do braço, deu uma vista-d’olhos no aposento.
Dois rapazes, um dos quais estudante, provavelmente sobrinhos do falecido, deixavam o quarto, após se persignarem.
Uma velha permanecia imóvel e uma senhora, de supercílios bizarramente espessos, cochichava-lhe algo. De sobrecasaca, um encorpado e enérgico chantre lia qualquer coisa em voz alta e com a expressão de quem não admitia a menor objeção. Na ponta dos pés, o camareiro Guerássim andava à volta do corpo de Ivan Ilitch, polvilhando o chão com uma certa substância, e, vendo tais manejos, Piotr Ivánovitch sentiu imediatamente um ligeiro cheiro de cadáver em decomposição. Quando da sua última visita a Ivan Ilitch, Piotr Ivánovitch vira aquele camareiro no escritório; desempenhava então as funções de enfermeiro e o doente demonstrava ter por ele uma especial estima.
Piotr Ivánovitch não cessava de fazer o sinal-da-cruz e de inclinar ligeiramente a cabeça, endereçando suas piedosas reverências indistintamente ao caixão, ao chantre e aos ícones colocados sobre a mesa, num canto do quarto. Depois, quando achou que já se persignara suficientemente, parou de fazê-lo e entrou a examinar o defunto.
Como é próprio dos mortos, aquele estava pesadamente espichado, os endurecidos membros afundados no forro do esquife, a cabeça para sempre apoiada no travesseiro e mostrando a fronte de um amarelo de cera, as têmporas úmidas e cavadas e o nariz saliente, que parecia pesar sobre o lábio superior. Mudara consideravelmente, emagrecera ainda mais depois da última visita de Piotr Ivánovitch, mas, como é próprio dos mortos, o seu rosto ficara mais belo e, sobretudo, mais digno. No seu semblante lia-se que fora feito tudo quanto se devia fazer, e com a máxima correção. Além disso, parecia traduzir uma censura ou uma advertência aos que ficavam. E a lembrança se afigurou inconveniente a Piotr Ivánovitch, ou pelo menos pareceu não lhe dizer respeito. Sentiu-se um pouco constrangido e, mais uma vez fazendo um rápido sinal-da-cruz, virou-se e se encaminhou para a porta, com uma pressa que fugia as regras da decência, conforme ele mesmo considerou.
Schwarz aguardava-o, na sala contígua, as pernas abertas, as mãos atrás das costas, brincando com a cartola. Um simples olhar para a figura prazenteira, limpa e elegante do amigo refez Piotr Ivánovitch. Compreendeu, incontinenti, que Schwarz pairava acima daquelas coisas e não se entregava a impressões acabrunhantes. O simples aspecto dele dizia que o incidente do funeral de Ivan Ilitch não teria força bastante para alterar a ordem dos acontecimentos, isto é, nada o impediria de pegar o baralho, de noite, e embaralhar as cartas, enquanto um criado colocava quatro velas novas na mesa; em suma, não havia motivos para se supor que as exéquias iriam impedi-los de passar o serão agradavelmente, como sempre o faziam. E foi, aliás, o que ele sussurrou a Piotr Ivánovitch, convidando-o a participar duma partidinha em casa de Fiódor Vassílievitch.
Mas, segundo parece, o destino não traçara para Piotr Ivánovitch, naquela noite, um jogo de cartas. Praskóvia Fiódorovna, mulherzinha baixa e gorda, que engrossava da cintura para baixo, apesar de todos os esforços em contrário, inteiramente de negro, a cabeça coberta por um véu e as sobrancelhas extraordinariamente espessas, como as da senhora que se postava junto ao ataúde, saiu do seu quarto, acompanhada de outras mulheres, dirigiu-se para o aposento do marido e disse a elas: — Façam o favor de entrar. A cerimônia fúnebre vai ser iniciada. Schwarz dobrou-se levemente, mas não saiu do lugar, aparentemente sem aceitar ou recusar o convite. Reconhecendo Piotr Ivánovitch, a viúva deu um suspiro, aproximou-se e, pegando-lhe a mão, falou:

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